De Três Furos a São Luís: vitória por meio da educação
Por: Silen Ribeiro
Foto: Leandro Alves
Filha de uma analfabeta que prezava pela educação dos filhos a fim de que não tivessem o mesmo destino que o dela, Benedita Frazão percorreu um largo caminho de superação. Saída do povoado Três Furos, a 150 quilômetros da capital, para dar continuidade aos estudos, já que no local não havia Ensino Médio, veio para São Luís – onde também foi trabalhar como babá em uma família de educadores – chegando até o mestrado. “Eu sou uma das raras exceções. Isso também porque convivi com uma família que prezava pela educação”, afirma.
A senhora pode nos contar um pouco sobre sua origem?
Eu sou de um povoado da baixada maranhense, chamado Três Furos. Lá também estudei até último ano do Ensino Fundamental. Morava com minha mãe e meus irmãos. Meus pais se separaram quando eu tinha três anos e quando meu pai faleceu eu tinha nove. Minha mãe, analfabeta – só sabia escrever o seu nome – fazia questão que seus quatro filhos estudassem para ter uma vida diferente da dela. Desenvolveu diversas atividades para sustentar a família: trabalhou na roça, como quebradeira de coco, com rede de pescar. Mas, infelizmente, teve um problema de saúde muito sério, uma úlcera e, em função disso, ficou impossibilitada de trabalhar e ajudar a gente. Uma das minhas irmãs, que é bem mais velha que eu, veio morar em São Luís para trabalhar como empregada doméstica. Ela ajudou a minha mãe a manter os outros filhos.
Com que idade aconteceu o seu primeiro contato com a educação formal e como foi essa experiência?
Entrei na escola com três anos, em um jardim de infância mantido pela Igreja. O meu primeiro contato com a educação formal foi nessa escola. Depois estudei em uma escola do município, onde tive contato com a leitura, com a escrita, mas nada muito profundo, inclusive porque os professores também não tinham praticamente formação, só tinham até a antiga 3ª série. Posteriormente, o município colocou outra escola, onde eu consegui terminar o meu Ensino Fundamental. Após isso, eu vim morar aqui em São Luís. Acredito que o meu contato de verdade com o ensino formal aconteceu nesse momento. Isso porque, até então, eu havia aprendido a ler e a escrever, mas compreender, só depois que eu vim estudar em São Luís.
Como se deu a decisão de vir para São Luís? Já havia a intenção de continuar com seus estudos? Foi esse o momento em que a senhora fez uma opção consciente pela educação?
Quando terminei a antiga 8ª série, no meu município não havia Ensino Médio, então eu não tinha como continuar os meus estudos lá. A minha irmã já estava trabalhando como empregada doméstica em São Luís. Então eu também vim para exercer trabalhos domésticos, como babá. Vim para cuidar de uma criança. E nessa casa, ofereceram-me a oportunidade para que eu desse continuidade aos meus estudos. Nessa família todo mundo é da educação. É uma família de pedagogos, uma família que tem uma escola privada, onde eu fui estudar. E aí eu pude entender que as minhas limitações se deviam à fragilidade da educação do meu Ensino Fundamental. Eu passei então a me ver com um olhar diferente, a me aceitar. Terminando o meu Ensino Médio, ingressei imediatamente na faculdade de Pedagogia e fui estagiar na escola em que estudei. Eles perceberam o meu potencial e lá fui ser auxiliar de coordenação.
Como foi conciliar o trabalho doméstico com a vida estudantil?
Não era fácil. No Ensino Médio eu estudava no mesmo turno que a criança. A gente ia para escola pela manhã, à tarde eu a ajudava a preparar os seus deveres e à noite eu já estava esgotada. Dormia um pouco e acordava entre 3h30 e 4h da manhã para estudar. Quando entrei para a Pedagogia, o curso era à tarde e eu trabalhava pela manhã. Segui o mesmo ritmo no que se refere a acordar e estudar durante a madrugada.
Com quantos anos a senhora terminou o Ensino Médio e qual a preparação que esse período possibilitou à senhora?
Eu terminei o Ensino Médio com 16 anos. Esse período foi muito importante porque foi em uma escola privada, com professores qualificados e que eram muitos preparados para entender o outro. Quando, no primeiro dia, o professor pediu para eu apontar no mapa onde estava o estado de São Paulo e eu não soube dizer, foi desesperador. Mas os professores me pediam calma, me estimulavam muito, acreditavam em mim. Os meus amigos de turma me ajudavam muito também: tiravam as minhas dúvidas, se disponibilizavam a estudar comigo. Eu nunca escondi nada deles. Eles sabiam que eu trabalhava na casa da dona da escola, mas não senti preconceito. Sou grata a eles. Incluíram-me. A filosofia da escola também prezava por isso.
Alguns dizem que a meritocracia na educação depende da igualdade de oportunidades. Oportunidades iguais, por sua vez, supõem igualdade de acesso, segundo análise do sociólogo francês François Dubet (2004). Qual é a sua opinião a respeito?
Eu acredito que realmente para as pessoas que vêm de classe “diferente” é tudo muito difícil, praticamente não há oportunidades. Eu sou uma exceção entre tantas pessoas que convivem comigo. Quando contei a minha história, na minha defesa de dissertação, isso chocou a turma. Embora, como disse anteriormente, não esconda a minha história, ninguém no mestrado sabia. É comum as pessoas pensarem que quem chega ao mestrado é porque teve muitos espaços para isso. Eu sou uma das raras exceções. Isso porque convivi com uma família que prezava pela educação.
Com quantos anos a senhora ingressou na universidade, qual foi ela e qual o significado dessa conquista?
Logo que terminei o Ensino Médio, aos 16 anos, ingressei imediatamente no curso de Pedagogia. Depois pude entrar no curso de história. Para a minha família, foi uma honra. E a minha mãe, apesar de não ser alfabetizada, entende como isso pode ser significativo. Naquele momento, já tinha um irmão formado em Matemática. Mas ele teve oportunidade diferente da minha. Eu vim para o emprego doméstico. Ele teve outro caminho. Mas aquela menina que tinha tanta dificuldade, que mal lia, conseguir entrar em uma faculdade, realmente foi uma marco para minha família. Não só para minha família como para aqueles que acompanharam meu crescimento.
Em que medida a entrada na universidade contribuiu também para a sua formação enquanto pessoa?
Eu considero que tenho três momentos. O momento cursando Pedagogia, o outro cursando História e o outro, o mestrado, que é o ápice da minha mudança como pessoa. A entrada na Pedagogia veio para reafirmar que eu tinha condições, capacidade. Eu digo para as pessoas, que alfabetizei-me no Ensino Médio. Dele saí consciente que ainda tinha dificuldades. Quando entrei na Pedagogia e pegava um texto de Sociologia, de Antropologia, eu chorava, porque eu não entendia. Somente quando cheguei ao terceiro período, que consegui tirar meu primeiro 10. O curso de Pedagogia me trouxe conteúdo e a certeza de que poderia ir muito além do que eu imaginava. O curso de História veio agregar conhecimentos. Passei a entender que eu poderia discutir, escrever sobre diversos temas. Mas entrar no mestrado, em uma universidade federal, foi o máximo. Eu me reconstruí como pessoa. Lá eu também percebi que preciso estudar mais, baixar mais a guarda, ouvir mais. Quando a gente vem de uma situação de muita dificuldade, olha para o outro e pensa: tem a vida fácil, não sei por que não valoriza. Até esse tipo de comparação eu deixei de fazer. Entendi que cada pessoa tem sua história, seu caminho. O contato com o meu orientador, Samuel Luiz Velazquez Castellanos, foi uma das melhores coisas que me aconteceu na vida, porque ele me deixou mais humanizada, mais consciente de tudo e até mais humilde para muitas coisas. Tranquilizou-me, me fez olhar coisas de forma mais minuciosa. Então, como sempre digo: esses três momentos me transformaram muito.
A senhora é pedagoga e historiadora. Como se deu a escolha dessas profissões e em que medida elas se completam?
A Pedagogia foi pelo contexto, pela influência das pessoas com as quais eu convivia e que eram da área da educação. Apaixonei-me e como profissional passei por vários campos, até ter a certeza de que queria sala de aula, porque descobri que eu amava ser professora, trabalhar com criança, com conteúdo. E aí fui ser professora de História dos anos iniciais. E me encontrei, porque ela também me fez descobrir enquanto pessoa, me aceitar. Eu compreendi a necessidade de entender mais sobre a História, especialmente a do Brasil, que me encanta muito. Decidi, então, ingressar no curso. Eu não queria trabalhar exatamente como professora de História, mas era interessante aprendê-la pela questão da minha própria aceitação, da minha compreensão de mundo. As duas se complementam em que sentido? Hoje eu tenho um olhar muito amplo em relação à vida social. Consigo orientar melhor um aluno, um professor, porque eu tenho o contexto pedagógico e o da compreensão histórica de cada sujeito. Para o mestrado, foi sensacional porque consegui trabalhar as duas coisas.
Qual o tema de sua dissertação de mestrado? Qual o seu objetivo e como se deu a escolha por ele?
O meu tema é “A Articulação Pedagógica na Disciplina de História entre o 5º e 6º Anos do Ensino Fundamental”, onde eu trabalho as minhas duas graduações. Ele surge da minha experiência como docente, minha luta para que os meninos entendessem o que é História, o que ela discute, o seu conteúdo. Eu sentia a minha deficiência enquanto pedagoga para ensinar a disciplina para eles. E vivia buscando formas de deixar a disciplina mais clara. 5º ano é História do Brasil e era muito difícil para que eles entendessem por ser muita teoria. E quando os alunos saíam para o 6º ano eu ouvia críticas da própria professora de História, que dizia que os meninos eram despreparados, não tinham tanto conteúdo, que pedagogo não sabia lecionar a disciplina etc. E pensei que poderia achar alternativas. Fui estudar para saber o que poderia fazer como pedagoga e na própria graduação de História comecei a fazer pesquisas. Foi aí que descobri que são coisas que vão para além da minha formação. Existe problema no próprio currículo, que não liga conteúdo a outro. Você termina História do Brasil, vai estudar a Pré-História, a História Antiga. Os alunos não conseguem fazer conexão. Além disso, há outras questões, como a própria maturidade, a questão do desenvolvimento da criança: ela está saindo da infância, no 5º ano, e no 6º estão chegando à adolescência. É uma fase de muitos conflitos. E entender a História, era um a mais. Somatizavam tudo e o rendimento deles baixava muito. Bom frisar que eu já tinha esse projeto montado desde o curso de História, mas com uma compreensão muito no senso comum. Eu focava muito no docente, porque em função das críticas, entendia que o problema estava nele. Quando surgiu o mestrado profissional e vi as temáticas, fiquei super feliz porque poderia usar o meu trabalho para discutir essas questões. Só no mestrado, então, que fui perceber que o problema estava além. Não se resume ao professor, que há muita coisa nessa transição. Mas considero a disciplina de História primordial neste processo, porque nela, nos anos iniciais, consigo primeiro trabalhar a sensibilidade do aluno para despertar para coisas como, quem sou eu, quem é a minha família, por que eu sou negra, por que você é diferente de mim. Isso tudo é a primeira compreensão. Ao entender tudo isso, você passa a se aceitar mais e isso vai fazer com que diminua o conflito que a pessoa vai ter lá no 6º ano. Neste, você fica solto no ambiente, você não tem mais o direcionamento, um professor para cada disciplina, e dizem assim: te vira, você está no 6º ano, tem que ter maturidade para estar aqui. Aí se fazem mais presentes o bullying, conflitos com a própria sexualidade etc. E os alunos não sabem lidar com isso, porque a História não trabalhou anteriormente com essas questões como deveria ter sido. Se trabalhado tudo isso, os conflitos diminuiriam e eles ficariam melhores, mais tranquilos. Só que isso não é feito.
Então a sua proposta do mestrado tem o propósito de modificar o ensino-aprendizagem do estudante baseado na disciplina de História, mas que vai influenciá-lo positivamente em outras áreas do conhecimento. A senhora pode explicitar melhor a maneira de como isso acontecerá?
Primeiro, na compreensão do eu. A segunda, na própria articulação do conteúdo dos 5º e 6º anos. O currículo te possibilita isso. Não tem nada especificando isso, mas ele é flexível. Você pode fazer adequação, de acordo com a realidade trabalhada. Mas quem pode fazer isso são os dois professores. O meu trabalho de mestrado me mostrou também que o professor que está lá não tem que ter somente conhecimento disciplinar, precisa conhecer também desenvolvimento humano, psicologia, precisa entender que aquele aluno do 6º ano tem aquele comportamento não é porque ele quer. E o docente precisa saber orientar se quer que ele tenha maturidade. Outra descoberta é que a afetividade, apesar de ser muito discutida, ainda precisa acontecer muito. Uma das coisas que os alunos falam muito é da ausência dessa afetividade, de que o professor deixa de se preocupar tanto com o humano e passa a se preocupar quase que exclusivamente com o conteúdo. Nas próprias respostas dos alunos a gente vai percebendo isso de maneira explícita, quando dizem, por exemplo, que os professores os ouviam e conversavam mais, que eles dão aula, fazem prova e vão embora. Diminuiu o vínculo. Por meio do mestrado, descobri que há muitos caminhos. Também detectei que o Brasil não discute articulação pedagógica. Este é um tema que já se debate em alguns países, inclusive da América do Sul, como a Venezuela. As nossas diretrizes trazem uma discussão simples sobre articulação. É citada em um único parágrafo. O trabalho me trouxe mais vontade de fazer um doutorado, porque agora tenho a certeza de que ainda tem muita coisa para a gente estudar.
A senhora afirma que sua trajetória de vida a impulsionou a concluir suas pesquisas com o intuito de ajudar as futuras gerações. De que forma isso se dá?
Uma das formas que eu encontrei para ajudar foi montando meu próprio estabelecimento escolar. Ele recebe crianças e adolescentes que estão na rede escolar, mas que estão precisando de mais apoio. São pessoas que têm conflitos escolares, que a forma de ensinar do professor não supre as suas necessidades. E eu recebo essas pessoas para ajudá-las, para reconstruir essas histórias, para mostrar que a educação tem possibilidades, que Matemática e História, por exemplo, não são tão difíceis. Outra forma de ajudar é, sempre que posso, vou para os interiores para dar formação para outros professores. Também, se tenho oportunidade de dar palestras para adolescentes, sempre me disponibilizo. Acho que isso pode servir de estímulo e eles percebem que há possibilidades e que estudando é o caminho.
Como a senhora destaca a importância de ter sido a primeira aluna a defender a primeira dissertação do Programa de Pós-Graduação em Gestão de Ensino da Educação Básica (PPGEEB) da Universidade Federal do Maranhão, além de ter sido a primeira colocada na seleção, sobretudo pela sua história de vida, marcada por tantas adversidades?
Ser a primeira a apresentar foi uma grande conquista. Como falei anteriormente, o mestrado em si trouxe uma mudança muito grande para mim, foi um benefício enorme para minha vida. Só eu consigo dimensionar o quanto foi importante para mim. Com ele tive a certeza de que eu consigo, eu posso. E é muito relevante para mim também saber que posso ser até estímulo para outros que ainda não conseguiram fazer mestrado, que têm medo de tentar. O entrar na Universidade Federal do Maranhão é como se fosse algo muito além, inalcançável para mim. As duas graduações fiz em faculdades privadas. Terminar o mestrado, então, é uma grande honra. Ser a primeira pessoa a defender é me sentir coroada, é saber que atingi a minha meta como aluna. O que ainda não consegui foi alcançar minha meta de conhecimento. Para isso, ainda tenho muito a percorrer.