Criaturas idênticas encontradas em águas árticas e antárticas: um mistério

polaresmat
Por Ivanildo Santos 8 de março de 2010

Há dois anos, vários navios de pesquisa zarparam rumo aos polos, para recensear as criaturas que vivem sob o gelo. Uma das descobertas mais surpreendentes foi a de que 235 espécies idênticas vivem em lados opostos do mundo, sem terem sido documentadas em qualquer outro lugar. É fácil compreender como enormes baleias-jubarte (Megaptera novaeangliae) são capazes de nadar de águas árticas para antárticas, mas a maioria dos diminutos vermes, caramujos e crustáceos na lista dos pesquisadores não são maiores que um grão de arroz. Como criaturas tão minúsculas, adaptadas a águas gélidas, percorrer 9.500 km través de climas mais quentes, para chegar ao polo oposto?

Sob o microscópio, esses invertebrados às vezes parecem tiras de sacos plásticos picotados, ou camarões com chifres. Não está claro como eles poderiam cruzar uma piscina a nado, muito menos viajar ao redor do globo. Sua “bipolaridade” constitui um mistério oceânico de 160 anos – que só aumentou com o tempo. “Se espécies bipolares são tão comuns como sugere nossa lista inicial, isso realmente significa que não apreciamos os mecanismos importantes para a conectividade no oceano tão bem como acreditávamos”, admite Russ Hopcroft, líder da porção ártica do projeto Census of Marine Life (Censo da Vida Marinha), do Consórcio para Lideranças Oceânicas.

A descoberta de espécies bipolares remonta às expedições do explorador vitoriano James Clark Ross e seus dois pesados navios de guerra, os cruzadores HMS Erebus e Terror, na década de 1840. Durante missões para mapear os polos Norte e Sul, ele coletou amostras da flora e fauna marinhas que eram notavelmente similares. Ross ponderou que, de algum modo, essas minúsculas espécies foram capazes não apenas de sobreviver nas águas gélidas que acabariam por afundar seus navios, mas também transitar ao redor de metade do planeta.

Desde então, os céticos têm disputado as evidências. Alguns reclamaram que os espécimes submarinos foram erroneamente identificados ou pareciam muito diferentes. Mas, em 2000, Kate Darling, oceanógrafa da University of Edinburgh, na Escócia, pôs fim ao debate. Ela coletou, em águas subpolares setentrionais e meridionais, respectivamente ao largo da Islândia e das Ilhas Falkland/Malvinas, amostras de foraminíferos, vagabundos oceânicos unicelulares, que lembram pedaços mastigados de goma de mascar descartada. Ao sequenciar o DNA ribossômico de três espécies – Globigerina bulloides, Turborotalia quinqueloba e Neogloboquadrina pachyderma – Darling constatou que os genes eram tão semelhantes que, segundo ela, “eles devem estar se misturando, talvez até agora”. (Por coincidência apropriada, ela coletou suas amostras a bordo de um navio britânico batizado com o nome de seu predecessor, o James Clark Ross).polaresmat

No mesmo ano em que Darling publicou suas descobertas, milhares de biólogos marinhos se uniram a fim de mapear as criaturas dos oceanos para o censo. A campanha, de uma década e US$ 650 milhões, lançou centenas de viagens de pesquisas ao redor do globo, dezenas delas rumo aos polos. Nada dessa envergadura tinha sido empreendido antes.

“Isso nos possibilitou a começar a enxergar padrões em escalas muito maiores que qualquer um de nós poderia ver individualmente em nossos próprios quintais”, diz Hopcroft. No ano passado, quando os pesquisadores árticos e antárticos reuniram seus dados, o mistério da bipolaridade expandiu-se para 235 espécies. E a questão ressurgiu: como os mesmos tipos de criaturas abrangem os dois polos?

Alguns cientistas e naturalistas, inclusive Charles Darwin, levantaram a hipótese de que espécies migraram durante milhares de anos, quando as temperaturas oceânicas médias eram muito mais baixas, provavelmente em algum período geológico entre o Terciário e a última Era de Gelo, há 18 mil anos. Mas os dados de Darling contradizem essa teoria. As minúsculas diferenças genéticas em seus “insetos”, como os chama, sugerem que as espécies se misturaram muito mais recentemente.

Hoje, a maioria dos cientistas acredita que as espécies viajam por uma espécie de esteira rolante submarina, chamada circulação termohalina, o fenômeno que se manifesta em todo o oceano, responsável por correntes marítimas, como a Corrente do Golfo no Atlântico. Como a água fria nos dois polos altera a salinidade e afunda à medida que se alastra ela forma discretos rios submarinos que descem até o Equador e reemergem nos lados opostos do planeta. Ao longo do caminho, as temperaturas oscilam apenas de 2ºC a 4ºC, o suficiente para a maioria dos habitantes polares sobreviver. As criaturas em si viajam de um polo ao outro suspensas em forma de larvas ou ovas, ou como adultos que se reproduzem por gerações em sua jornada de 9.500 km, antes de chegarem ao destino de 400 a 600 anos depois. O retorno ao seu polo de origem poderia levar mais 1.600 anos, em razão das correntes dominantes.

Além da viagem tremendamente longa, a teoria refuta a bipolaridade em parte. Ela sugere que as espécies poderiam viver fora das regiões polares, só não as encontramos ainda. “É o inconveniente de como definimos alguma coisa. A definição é funcional ou baseada em falta de dados? Sabemos tão pouco sobre as camadas profundas do oceano em comparação com a superfície”, declara Hopcroft.

A lista de espécies bipolares é tentativa por outra razão: os biólogos identificaram a maioria das espécies com base em morfologia, em forma e estrutura. Espécies que vivem em ambientes similares frequentemente têm aparência idêntica, mas podem ser estranhos genéticos. “Até você desvendar a genética não se pode saber com certeza que são bipolares”, diz Darling.

No ano passado, uma equipe de recenseamento vinha depurando coleções marinhas para encontrar espécimes dos dois polos, preservados em um grau de álcool puro o bastante para permitir a retirada de amostras de DNA dos organismos. (A vasta maioria foi armazenada em formol e não pode ser genotipada). Para investigar a bipolaridade dos espécimes, eles sequenciaram, até agora, centenas de amostras de DNA mitocondrial, conhecido como o gene codificador de barras. Eles esperam encerrar sua busca até a data de publicação do Censo da Vida Marinha, em outubro.

“Acredito que nossos resultados realmente revisarão o paradigma sobre a conexão entre os polos”, afirma Hopcroft. Toda forma de vida provavelmente fez uma jornada única, mas, vistas em conjunto, revelarão um mundo entrelaçado, até mesmo em suas extremidades.