Livro apresenta Helena Ignez para os cinéfilos franceses
Fonte: Agência FAPESP
Texto: José Tadeu Arantes
Agora com 77 anos, e trabalhando principalmente atrás da câmera como diretora, Helena Ignez foi uma atriz fulgurante na segunda metade dos anos 1960 e início dos anos 1970. Embora já tivesse uma carreira consistente em teatro e cinema, sua revelação para o grande público ocorreu em O Padre e a Moça (1966), dirigido por Joaquim Pedro de Andrade. Em 1968, 1969 e 1970, participando muito ativamente do processo criativo da produtora de vanguarda Belair, Helena teve suas três atuações mais famosas, em O Bandido da Luz Vermelha (1968), A Mulher de Todos (1969) e Copacabana Mon Amour (1970), todos eles dirigidos por Rogério Sganzerla.
Outros títulos fortes da época foram Sem Essa, Aranha (1970), de Sganzerla, e Cuidado Madame (1970), de Júlio Bressane. Sempre dirigida por Sganzerla, com quem foi casada, ou por Bressane, Helena emprestou rosto e corpo para o chamado “cinema marginal”, que, juntamente com as canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil, as performances de Hélio Oiticica e as encenações teatrais de José Celso Martinez Corrêa, constituiu o último arroubo de experimentação estética e transgressão política de um período excepcionalmente intenso da cultura brasileira. Depois viria o fechamento completo do regime militar e o exílio de vários artistas.
Mas Helena não foi apenas a face bonita do “cinema marginal”. Ela foi também o cérebro, trabalhando em um sistema de “três em um” com Sganzerla e Bressane e exibindo para a câmera um modo totalmente peculiar de atuação. “Nenhuma atriz no mundo fez o que ela fez no período da Belair: um tipo de atuação excessiva, contestadora, debochada, escrachada, verborrágica, sem limites, com um forte espírito de afronta”, disse à Agência FAPESP Pedro Maciel Guimarães Junior, professor do Departamento de Cinema e do Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Juntamente com o seu orientando de doutorado Sandro de Oliveira, Guimarães publicou recentemente na França o livro Helena Ignez: actrice experérimentale, editado pela Université de Strasbourg, com apoio da FAPESP.
“O livro surgiu de um convite do laboratório Accra [Approches contemporaines de la création et de la réflexion artistiques] daquela universidade. Os responsáveis pelo laboratório não conheciam o cinema marginal brasileiro e nem sabiam quem era Helena Ignez. Ficaram absolutamente surpresos depois que lhes mostrei alguns trechos de filmes de Sganzerla e Bressane. Tão interessados que me convidaram para escrever o livro”, contou o pesquisador.
Para se ter ideia, o livro é o terceiro da coleção Études Actorales (Estudos de Atuação), totalmente focado em atores. Os dois primeiros foram dedicados respectivamente a Montgomery Clift e Leonardo de Caprio, dois nomes mundiais ligados à grande indústria cinematográfica norte-americana. “O livro sobre Helena foi algo completamente diferente, tratando de um cinema fora do eixo Estados Unidos-Europa, fora da grande indústria, protagonizado por uma mulher, sendo esta uma atriz que primou pela extrema liberdade e experimentação”, disse Guimarães.
Uma coisa que o pesquisador e seu orientando procuraram fazer logo de saída foi descartar a própria expressão “cinema marginal”, que, além de vaga, se tornou um tanto pejorativa. Por isso o subtítulo “atriz experimental”, que deram ao livro. “Quisemos chamar a atenção para o vínculo de Helena com a vertente mundial da experimentação. Sua presença em cena são fulgurações corporais, sem qualquer tipo de amarra. Se pensarmos em critérios como construção de personagem, desenvolvimento psicológico, comedimento do gesto, submissão do gesto à fala, sua forma de atuação era quase uma não atuação. Ela desconstruiu tudo o que havia sido consagrado pelo cinema americano clássico. Desconstruiu para construir outra coisa, baseada em outros parâmetros”, explicou Guimarães.
Tal modo de atuação não foi criado do nada, é claro. Helena teve grandes precursores. Antes de todos, o extraordinário Charlie Chaplin. “Fizemos uma análise muito específica do filme Sem Essa, Aranha, estrelado por ela em 1970, comparando-o com o primeiro filme do Chaplin, Corrida de Automóveis para Meninos, de 1914. Os procedimentos dela e dele são idênticos: desfilar pelo espaço cênico, afirmar a própria imagem para a câmera, usar o corpo como elemento impositivo, buscando sempre um tipo de gestual que não lembra o ser humano, mas uma máquina, uma marionete, uma boneca”, detalhou o pesquisador.
E essa forma maquinal, não naturalista, vinculou também a atuação de Helena a outra tradição, a do cinema soviético dos anos 1920, baseado na ideia do corpo-máquina desenvolvida pelo ator, diretor e teórico Vsevolod Meyerhold (1874-1940). “Por isso, em determinada passagem do livro, nos perguntamos se Helena não teria sido uma atriz meyerholdiana”, disse Guimarães.
“Além disso, existe uma relação muito forte entre o jogo interpretativo dela e a reinvenção proposta por algumas atrizes dos anos 1950, que foram casadas com grandes cineastas e dirigidas por eles. Foi o caso de Harriet Andersson (casada com Ingmar Bergman), de Ingrid Bergman (Roberto Rosselini) e Gena Rowlands (John Cassavetes). Essas atrizes concederam para a câmera desses cineastas algo que se aproxima da relação íntima entre uma mulher e um homem. Assim também se deu com Helena e Sganzerla. Rompendo a relação de submissão da atriz ao diretor, ela conquistou na frente da câmera um protagonismo e uma liberdade de criação análoga à do cineasta por trás da câmera”, prosseguiu.
Identificadas as influências, o pesquisador enfatizou que isso não basta para explicar a atriz Helena e toda a inovação que ela trouxe em seu trabalho. “Ela chegou ao cinema precedida por uma experiência teatral muito consolidada, primeiro em Salvador e depois em São Paulo e no Rio, trabalhando com textos clássicos e modernos, entre eles Brecht e Grotowski. Nunca deixou a atividade teatral de lado; sempre atuou concomitantemente em cinema e teatro, permitindo que uma atividade reverberasse na outra. Mas não se deixou aprisionar por essa bagagem teórica. Existe nela uma mistura de erudição e intuição e um forte afinamento com o espírito do tempo”, disse.
Sem ser explicitamente política nos moldes em que o era o cinema novo, a produção intensiva da Belair, que chegou a gerar seis filmes em um único ano, resultou em uma obra provocativa, com fortes referências ao momento político e artístico vivido pelo Brasil na época. De certo modo, o “cinema marginal” pode ser considerado uma espécie de filho rebelde do “cinema novo”. E, antes de Sganzerla, a própria Helena foi casada durante poucos anos com Glauber Rocha, com quem teve uma filha, Paloma Rocha.
“Havia, no início, uma confluência grande entre essas duas tendências cinematográficas, tanto no sentido de questionar determinados códigos de cinema quanto no posicionamento frente às questões sociais. Porém, em determinado momento, o ‘cinema marginal’ e o ‘cinema novo’ se apartaram. E o ‘cinema marginal’ enveredou por um caminho de experimentação que, na época, foi considerado menos político. Mas, hoje, percebemos que ele captou com muita agudeza a transformação capitalista em curso na sociedade brasileira. Por exemplo, em relação à ocupação das cidades, o filme Copacabana, Mon Amour tem cenas inteiras filmadas em favelas, desconstruindo a imagem que se tinha de favela, imagem que o próprio cinema novo havia contribuído para criar”, afirmou Guimarães.
O “cinema marginal” incomodava. E, depois do fechamento político e cultural provocado pelo Ato Institucional no 5, em dezembro de 1968, e da instalação do governo de Emílio Médici, no final do ano seguinte, a permanência de seus criadores no Brasil tornou-se cada vez menos sustentável. Esse cinema irreverente e até mesmo bizarro era um contraponto à narrativa ufanista do regime militar. Em 1972, não deu mais para ficar, e Sganzerla e Helena optaram pelo autoexílio.
Ela filmou na Europa, nos Estados Unidos e na África, e fez experiências pessoais no campo da espiritualidade. Mas o exílio interrompeu um fluxo criativo, que só se restabeleceu depois que o casal voltou ao Brasil, já no ocaso do regime ditatorial. Sganzerla morreu em 2004, vitimado por um tumor cerebral. Helena continuou ativa, no teatro e no cinema, e dirigiu vários filmes – entre eles, Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha (2010). Baseado em um roteiro de Sganzerla e codirigido por Ícaro Martins, o filme foi também uma empreitada familiar: Sinai Sganzerla, filha de Helena e Rogério, participou como assistente de direção, e sua irmã, Djin Sganzerla, atuou no elenco.
A trajetória de Helena Ignez, atriz e diretora da periferia do sistema, original sob vários pontos de vista, está agora ao alcance dos cinéfilos de língua francesa. “Os cursos de cinema na França são muito pautados pelos nomes de grandes autores e atores. Quando se fala em cinema brasileiro, a referência é Glauber Rocha e outros diretores consagrados de sua geração. Os cineastas e atores experimentais são praticamente desconhecidos. Então, foi uma novidade poder escrever sobre ela”, disse Guimarães.
O lançamento do livro na França foi acompanhado por seminários na Université de Strasbourg e na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Guimarães e Oliveira estão preparando agora uma edição brasileira, com texto ampliado e ilustrações coloridas.
Helena Ignez: actrice experérimentale
Autores: Pedro Guimarães e Sandro de Oliveira
Editora: Accra / Université de Strasbourg
Ano: 2018
Páginas: 170