No ritmo do bumba meu boi

Por Silen Ribeiro 30 de junho de 2018

Por Silen Ribeiro

Considerado a expressão maior da cultura popular do Maranhão, o nosso bumba meu boi é Patrimônio Cultural do Brasil e pode se tornar Patrimônio Imaterial da Humanidade. Hoje, 30 de junho, Dia Nacional do Bumba Meu Boi, a professora do IEMA, pesquisadora, especialista em Gestão da Cultura, Mestra em Cultura e Sociedade, Marla Silveira, fala-nos nesta entrevista sobre essa importante manifestação cultural. Ela é autora do livro “Nas entranhas do Bumba meu boi”, EDUFMA, 112 páginas, financiado pelo EDITAL FAPEMA Nº 21/2015 APUB LIVROS.

O que é o bumba meu boi, como e quando surgiu e quais as diferentes denominações que ele recebe em outros estados brasileiros?

O bumba meu boi, ou simplesmente boi, é a mais recorrente e conhecida manifestação cultural do estado do Maranhão. Um auto popular religioso, que mistura influências indígenas, europeias e africanas, simbolizando as principais etnias formadoras do povo brasileiro, num relato popular e dramatizado das relações sociais entre patrão e subalternos – para celebrar a fé e a devoção a santos do catolicismo, em especial São João, Santo Antônio, São Pedro e São Marçal. Envolve em sua realização artes visuais, como os bordados nas indumentárias e no couro do boi, feitos com paetês, canutilhos e contas de vidro ou miçangas, além de teatralidade, música e dança. A origem do bumba meu boi é incerta, uma vez que está presente como manifestação cultural em diferentes locais como África, Portugal, França, Ásia e as Américas Central e do Norte. No Brasil, há estudos que relacionam o seu surgimento ao ciclo do gado, nos séculos XVII e XVIII. Já no Maranhão, teria seu nascedouro na Região de Guimarães, provavelmente nas fazendas de engenhos, como brincadeira dos escravizados. Talvez, para não dar pretexto a perseguições e repressão de que sempre foi vítima, o boi, embora seja uma manifestação religiosa, é denominado de “brincadeira”, por seus integrantes, que chamam a si mesmos de “brincantes”. Recebe denominações distintas, de acordo com a localização geográfica que pertence. Dessa maneira, boi de jacá ou boizinho em São Paulo e no Rio Grande do Sul; boi de mamão em Santa Catarina e no Paraná; boi-bumbá ou bumba-boi no Amazonas; boi Surubim no Ceará, boi de reis no Espírito Santo, dentre outras.

Quais as principais personagens do bumba meu boi do Maranhão e qual o significado delas?

A personagem protagonista no bumba meu boi maranhense é um boi, representado por uma armação de madeira coberta de pano, que imita o animal verdadeiro. Debaixo dele, fica um dançarino, o miolo, que precisa ser muito hábil para cumprir os movimentos entendidos como corretos, pelos amos e público apreciador. Porém, associadas à apresentação, existem personagens representativas da história que envolve o bumba meu boi.       As principais são: Pai Francisco, o ladrão do boi; Catirina, a esposa grávida; o amo, fazendeiro, dono do boi; os vaqueiros e o pajé, o curandeiro que ressuscitará o animal; o(a)s índios(a)s ou tapuio(a)s, chamados para rastrear o boi.  Em alguns sotaques, principalmente, no da baixada ou sotaque de Pindaré, há a figura do cazumbá (ou cazumba). Essa personagem usa máscara ou careta, uma bata de veludo bordada e bem larga, por baixo, tem um pedaço de madeira ou um cesto de palha para deixar os quadris bem alargados. Sua principal função é distrair o público. Já no cordão, como é denominada a roda formada pelos brincantes, as personagens acima não integram o cordão, com exceção do(a)s índio(a)s.  Com eles, há o(a)s caboclo(a)s de fita ou rajados, o(a)s caboclo(a)s de pena, presentes no sotaque de matraca ou da ilha. Os brincantes do cordão usam indumentárias variadas, específicas de cada sotaque que demarcam as diferenças entre os grupos de bumba meu boi existentes. A teatralização da história do bumba meu boi é denominada auto ou comédia ou, ainda, matança.  A dinâmica maior do auto é realizada em seu centro, onde fica o boi, em torno do qual ficam os integrantes do cordão. O auto é precedido de algumas toadas que anunciam o bumba meu boi e encerrado com a toada do urrou, para festejar o renascimento do boi.

No nosso bumba meu boi há diferentes sotaques. Quais são eles e o que cada um deles representa?

A estética diferenciada nos vários grupos de bumba meu boi no Maranhão é denominada de sotaque. Assim, pode ser entendido como a modalidade ou o estilo rítmico que divide os diferentes grupos de bumba meu boi. É determinado pela região ou cidade de origem do boi e/ou pelo conjunto de instrumentos utilizados.  A caracterização dos sotaques é baseada nas especificidades de ritmos, personagens, indumentárias, instrumentos, passos e evolução da dança, que podem formar círculo, semicírculo ou fileiras simétricas. Dessa maneira, sotaque é a denominação usada para classificar os diferentes grupos de bois encontrados no estado do Maranhão. Há cinco tipologias de sotaques legitimadas: de zabumba ou Guimarães; da ilha ou matraca; da baixada ou Pindaré; de orquestra; e de Cururupu ou costa de mão. Existem ainda os grupos que não se enquadram em nenhum desses citados por apresentarem, principalmente, elementos de sotaques variados ou mesmo associados a outras dinâmicas culturais. Esses grupos de criação mais recentes, mais “modernizados”, são comumente denominados bois alternativos ou grupos parafolclóricos. O sotaque de Guimarães ou de zabumba é originário da cidade de Guimarães, considerado o mais antigo. Distingue-se por usar a zabumba, um grande tambor que, é dependurado em uma grossa vara para que possa ser tocado.  O outro instrumento é o pandeirinho ou tamborinho, semelhante a um tamborim de bordas mais largas. As zabumbas e os pandeirinhos são esquentados no calor da fogueira e são revestidos com couro do boi (animal). Os brincantes dançam formando um semicírculo na maior parte da apresentação, denominada meia lua. O ritmo é um dos mais acelerados, muito parecido com o samba. Desse tipo de sotaque, o Boi de Leonardo é o mais famoso e conhecido. Os primeiros grupos a serem formados desse sotaque em São Luís foram o de Laurentino (Boi da Fé em Deus), que passou para Dona Terezinha depois que o fundador faleceu; e o de Misico (que depois passou a ser de Canuto). Esses influenciaram o surgimento de outros, dos quais, tem-se registro o de Melônio (que depois passou a ser de Lauro – Ivar Saldanha), de Newton (Bairro de Fátima) e o de Leonardo (Liberdade); o sotaque de matraca ou da Ilha é de origem da Ilha de São Luís. Os instrumentos são os pandeirões e as matracas. Esses são tocados na posição em cima do ombro dos tocadores. O caboclo de penas é um brincante exclusivo desse sotaque, usa um cocar com penas na horizontal e veste saiote, gola e adereços nos braços e pernas, de penas de ema tingidas em cores variadas; as índias também possuem sua indumentária feita com essas penas; têm ainda os caboclos de fitas. Destaque para o chapéu desses brincantes, usado com a aba virada na frente. Os grupos não têm uma definição certa de pessoas que tocam as matracas e pandeirões. Os apreciadores desse sotaque comumente levam suas próprias matracas. Os primeiros grupos criados foram o da Madre Deus, Maioba, Sítio do Apicum. Mas os maiores batalhões são os Bois de Maracanã e da Maioba; o sotaque da baixada ou Pindaré é originário de duas cidades: São João Batista e Viana. Os instrumentos usados também são as matracas e os pandeirões. Esses têm tamanho menor do que os de sotaque da ilha.   O tocador de pandeirão segura o instrumento na altura da perna. Caracteriza-se pelo chapéu dos caboclos de fitas que apresentam uma enorme aba virada para cima, bordada e adornada com penas de emas. O primeiro grupo foi o de Apolônio – o Boi de Pindaré. Mas o amo mais famoso desse sotaque foi Bartolomeu dos Santos, conhecido como Coxinho, muito famoso por suas toadas.  A mais famosa é intitulada “Urrou o boi”, de 1972, um dos primeiros registros fonográficos de bumba meu boi, tornou-se o hino oficial do folclore maranhense; o sotaque Costa de mão ou de Cururupu é originário da cidade de Cururupu. Os instrumentos são os maracás de metal, tambores-onça, pandeirões e taróis. A principal característica é a forma em que os pandeirões são tocados, com as costas das mãos. Atualmente existem apenas dois grupos e é muito pequena a presença nas programações públicas da capital, mais restrito à região de origem; o sotaque de orquestra recebeu essa denominação por acrescentarem instrumentos de corda (banjos), metais (saxofone, trombone e trompete) e de sopro (clarinete) aos instrumentos de percussão (zabumba e tarol). Nascido no município de Rosário. O mais antigo dos grupos desse sotaque é o boi de Axixá.

Faça uma breve abordagem acerca da religiosidade e identidade do bumba meu boi do Maranhão.

No Maranhão, São João é o santo da fé que rege o bumba meu boi. É uma tradição que se fundamenta na crença de fazer a festa, dançar, tocar, cantar. É a maneira mais convincente de agradar o santo, como forma de retribuir uma graça alcançada. São João é um santo da igreja Católica que, segundo as crenças populares, auxilia o homem a enfrentar os desafios mais difíceis. O dia de celebração desse santo é dia 24 de junho. Nesse mesmo mês, no Maranhão, ainda são comemorados mais dois outros santos católicos: Santo Antônio, no dia 13 e São Pedro, 29. Há ainda São Marçal, um santo de devoção popular dos ludovicenses, comemorado no dia 30 de junho, decretado feriado na capital do Maranhão, por meio da Lei nº 12.103/2009. Na noite que antecede o dia de São João, os grupos realizam o batizado do boi, marcando o início das apresentações do ano, o que significa, na simbologia desse contexto, uma espécie de ciclo vital do Boi.

A senhora é autora do livro “Nas entranhas do bumba meu boi”.  Qual a importância da obra para a nossa cultura?

O convívio com alguns grupos de bumba meu boi me fez perceber que são grandes o interesse e os esforços, por parte dos donos dos grupos, independente do sotaque, para que seu boi possa brincar nos circuitos oficiais da capital e, se possível, em outros estados do Brasil ou até mesmo no exterior. Foi a partir destas observações que veio a decisão de enfocar os procedimentos que tomam para realizar suas aspirações, essencialmente sob o aspecto da produção, da logística. O trabalho desses grupos para a organização, produção e manutenção do boi é muito complexo. As mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais nas últimas décadas fizeram com que os grupos dependessem muito dos poderes públicos. Os amos dos bois precisam pôr em prática uma série de estratégias e políticas internas e externas para garantir suas apresentações. Um amo tem que administrar muitos problemas internos, como conflitos entre os participantes, estabelecer quem vai ocupar certas funções, os pagamentos para as costureiras e bordadeiras, a distribuição dos cachês, a compra de materiais, as condições para os ensaios, a locomoção do grupo, as comemorações do batizado e da morte do boi etc. Mas há ainda os problemas externos, como as relações com funcionários dos poderes públicos, políticos, patrocinadores e aqueles que assistem à festa. Muito tempo é gasto durante o ano para botar o boi na rua. Esse processo se acelera na medida em que se aproxima o período junino. Meu esforço neste livro foi o de verificar as tensões nos relacionamentos, as disputas, os exercícios de poder e de mediação, negociações, acordos e trocas nas entranhas do boi, tendo como objetivo apontar os aspectos mais relevantes das políticas e estratégias, internas e externas, realizadas por integrantes do grupo Boi de Leonardo, sotaque de zabumba, com foco no trabalho de sua ama, Regina, principal informante do meu trabalho de campo. As apresentações em espaços como praças e/ou arraiais proporcionam grande visibilidade aos bois, o que lhes possibilitam oportunidades para novos contratos, para outras apresentações, geralmente em espaços privados, eventos comerciais, empresariais, festas comunitárias e familiares. Todo esse processo celebrativo, operando também sob a lógica do espetáculo, contribui para a formação de plateia, o que garante novos admiradores e apreciadores das diferentes manifestações de bumba meu boi. Por outro lado, na medida em que toda essa exposição gera o aumento ou a manutenção do prestígio dos agrupamentos, sobretudo aqueles de caráter mais tradicional, fortalecendo sua legitimidade, pode igualmente representar alguns riscos, como a descaracterização ou até mesmo a extinção de elementos simbólicos do ritual. O Boi de Leonardo foi escolhido por ser um dos grupos mais antigos, tradicionais e representativos de São Luís, o mais destacado do sotaque de zabumba, além de ser de fácil acesso, devido a sua localização numa região central da cidade. Para tal, utilizei as vias que a antropologia simbólica permite percorrer para a realização de uma descrição densa desse complexo fenômeno, fomentando o desenvolvimento de uma análise sobre tal manifestação popular. Os dados coletados permitiram elaborar, em termos teóricos, uma análise do Boi de Leonardo sob o olhar da criação, existência, produção e continuidade. O enfoque considera, também, que o grupo se caracteriza por ser portador de uma cultura organizacional criada pelo mestre Leonardo (amo fundador do boi) e atualizada por Regina, sua filha e herdeira, aproximando a dinâmica de um grupo familiar, cultural e tradicional da lógica presente em organizações modernas, imprescindível ante as transformações sociais, políticas, econômicas, comunicacionais e tecnológicas contemporâneas. Arrisco afirmar que resulta numa descrição densa, construída a partir das categorias de análise cultura popular e tradição, possibilitando regular conteúdos simbólicos que identificam o grupo e ordenam suas relações, internas e externas, guiando assim a interpretação do que foi observado, vivido e ouvido na convivência com os integrantes do Boi de Leonardo. Resultando numa espécie de guia de sobrevivência para as diferentes manifestações e expressões culturais existentes não só no Maranhão, uma vez que é um trabalho pioneiro a respeito da compreensão e análise da lógica de mercado imposta nos dias atuais.

O seu livro teve publicação apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA). Como pesquisadora, como a senhora avalia a relevância de apoio como esse?

O mérito de fomentadora da produção e disseminação do conhecimento científico e tecnológico é absolutamente salutar à FAPEMA e, principalmente, à Secretaria ao qual é ligada, a SECTI, pois atendem uma seara carente de incentivo e reconhecimento. Além, claro, de correto e justo uso de recurso público.